segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Kiss o beijo da Morte - Juventude interrompida

Juventude interrompida
Kiss o beijo da Morte

A crueldade do fogo causou a maior tragédia por incêndio já vista no país. O mesmo fogo que aquece e ilumina foi devastador e desumano na madrugada do último domingo, transformando-se em uma fumaça negra, tóxica e impiedosa que tomou conta da boate Kiss, na cidade de Santa Maria. Uma sucessão de erros deixou uma ferida aberta na cidade, que fica bem no centro do Rio Grande do Sul. Gaúchos ou não, o Brasil e o mundo morreram um pouco mais diante da tragédia causada por imperícia e que levou a óbito 235 jovens, a maioria entre 16 e 25 anos, e mais 143 feridos internados, 87 deles em estado grave, segundo Alexandre Padilha, ministro da Saúde. 



Em número de vítimas fatais, o incêndio em Santa Maria é o maior no Brasil desde 1961, quando morreram 503 pessoas na tragédia do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói, no Rio de Janeiro. Embora a fatalidade gaúcha não tenha sido premeditada, como foi a carioca, trata-se de um crime. Basta analisar de perto a casa noturna para se certificar de que ela era um desastre iminente. A boate Kiss funcionava sem alvará há seis meses, não tinha saídas de emergência e nem sinalização. 

Uma só saída na boate e apenas três minutos para lutar pela própria vida. Esse foi o tempo suficiente para que o local, que tinha capacidade para até 1000 pessoas, e que na noite do acidente abrigava até 1.500, tivesse seu teto destruído pelas chamas, segundos depois de Marcelo Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava na noite da tragédia, acionar o sputnik, um sinalizador que lançava fogos durante o show. Em contato com a espuma que revestia a cobertura da boate, foi fatal. O extintor de incêndio foi acionado, mas falhou. Integrantes da banda informaram a Polícia Civil que o fogo começou depois de uma pane no sistema elétrico da boate e que teria surgido com um curto-circuito na fiação. 

Marcelo e Luciano Augusto Leão, produtor da banda, foram presos na segunda-feira para não atrapalhar as investigações da Polícia Civil, responsável pelo inquérito. Pelo mesmo motivo, também foram detidos Elissandro Callegaro e Mauro Hoffman, ambos sócios da boate Kiss. A prisão foi justificada por um possível envolvimento deles na cena do crime, retirando as imagens de segurança que ajudariam a Polícia a elucidar o que aconteceu no fatídico 27 de janeiro. Segundo eles, o sistema de monitoramento já estava desativado há pelos menos dois meses antes da tragédia. Afif Jorge Simões, juiz de Santa Maria, acatou um pedido da Defensoria Pública e, ainda na segunda-feira, bloqueou os bens dos sócios da boate para cobrir indenizações futuras. 

Componente de qualquer tragédia, ao desacerto do músico soma-se a ganância dos seguranças do local. Relatos de testemunhas que estavam na boate afirmaram que somado ao desespero de tentar escapar do sufocante monóxido de carbono, inevitável se aspirado por alguns minutos, estava a brutalidade dos seguranças, que exigiam, antes da fuga, o pagamento da comanda de consumo, até que perceberam que não se tratava de uma briga ou de uma tentativa de golpe para não pagar a conta, e sim, de uma questão vital. Foi dessa forma que muitos jovens, inteligência e talento para o Brasil, grande parte deles estudantes da Universidade Federal de Santa Maria, perderam a vida: lutando. Por esse motivo, a maior parte morreu nos banheiros da boate, tentado escapar da nuvem tóxica formada com a queima da espuma do teto. Foi Edi Paulo Garcia, capitão da Brigada Militar (BM), quem deu a triste confirmação: 90% dos corpos estariam nos dois banheiros da boate — um feminino e outro masculino. Além do monóxido de carbono, um dos gases resultantes da combustão da espuma que revestia a acústica da boate é o cianeto. O mesmo usado por Adolf Hitler nos campos de concentração nazistas. 

A Rua Andradas foi tomada por pessoas. Poucos curiosos, como é de praxe em acontecimentos de tamanha dimensão. A maioria, heróis anônimos, conscientes de que o milagre do qual acabavam de ser presenteados tinha seu preço – o dever de ajudar quem ainda estava dentro da boate. Enquanto muitos pais e parentes de vítimas dormiam, sem saber o que havia acontecido, jovens arriscaram-se com picaretas em uma tentativa de abrir espaço na parede para que a fumasse interna fosse diluída e evacuada para fora do local. Jovens que, após conseguirem libertar-se da morte por asfixia, clamaram por socorro. 

O Centro Municipal de Desportos sempre foi um lugar de grande movimentação. Atletas ou não, era ali onde a cidade se reunia para grandes eventos locais. Dessa vez, ao meio dia de domingo, nada de festas ou comemorações. O CMD serviu de abrigo aos corpos das vítimas, que foram reconhecidas por seus parentes e veladas todas no mesmo ambiente. Para facilitar a identificação, muitos corpos carregavam no peito objetos pessoais, como documentos, bolsas e telefones celulares. Muitos aparelhos tocavam. Uma das vítimas recebeu 104 ligações da mãe, que provavelmente, em um instinto natural, previu o que aconteceria a seu filho. 

Tantas palavras e discursos: foi o que restou para as autoridades. A presidente Dilma Rousseff teve uma postura irrepreensível diante da catástrofe. Reduziu sua participação na reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que aconteceu sem sua presença no Chile, e foi pessoalmente, na manhã de domingo, à cidade gaúcha. Seu primeiro pronunciamento após o acidente foi marcado pela emoção. A presidente afirmou: “É uma tragédia para todos nós. Não vou continuar na reunião, por razões muito claras. Diante do que ocorreu, quem precisa de mim hoje é o povo brasileiro e é lá onde eu tenho de estar”. Dilma deixou os protocolos de lado e chorou ao dizer: “Neste momento de tristeza, nós estamos juntos e necessariamente iremos superar”. 

Já na segunda-feira, a presidente prosseguiu com a agenda de trabalho no Encontro Nacional de Prefeitos, realizado em Brasília. Em seu discurso de abertura, pediu um minuto de silêncio e a responsabilidade do poder Executivo de assegurar que tragédias como a de Santa Maria não se repitam. 

Também em Brasília, Agnelo Queiroz afirmou que vai reforçar as ações da Agência de Fiscalização do DF (Agefis) e do Corpo de Bombeiros nas casas de shows que não têm alvará ou que não estejam com a documentação em dia. A Ordem dos Advogados do Brasil - DF enviou nota à imprensa afirmando “sua solidariedade incondicional aos familiares das vítimas do incêndio” e, como uma forma de homenageá-los, a seccional do Distrito Federal baixou a meio mastro suas bandeiras, em sinal de luto, por três dias. 

Leonardo Santana, presidente da União Brasileira de Municípios (UBAM), também expressou-se por meio de uma Declaração de Pesar e Resignação, suas condolências a Cezar Schirmer, prefeito do Município de Santa Maria, mas também alertou a administração municipal sobre a obrigação de realizar uma “vigilância mais eficaz em todos os recintos que aglomeram pessoas sem apresentar um plano diretor de segurança”. 

Quando acontecem desastres dessa magnitude, o mundo perde suas fronteiras. O incêndio repercutiu durante toda a semana em toda a imprensa mundial, seja em canais de TV, veículos impressos ou on-line. A solidariedade também veio de todos os cantos do planeta. Internacionalmente, o primeiro a se manifestar foi Ban Ki-moon, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), expressando “condolências às famílias e aos amigos daqueles cujas vidas foram perdidas”. O Papa Bento XVI também se manifestou, afirmando: “Confio a Deus Pai Misericordioso os falecidos e peço ao Céu conforto e melhoras para os feridos. Nada de rivalidades regionais: a Argentina foi um dos primeiros países a doarem pele para os feridos em Santa Maria, do banco de pele do Hospital Juan Garrahan, em Buenos Aires”. 

Santa Maria já não é mais aquela cidade pacata e tranquila. Em um só dia, na segunda-feira, foram sepultados 106 de seus jovens. Uma passeata que partiu do centro de Santa Maria rumo às principais ruas da cidade reuniu uma multidão de 15 mil pessoas. Vestidos de branco, alguns pediam paz, outros justiça, e outros apenas com o silêncio, demonstraram o tamanho de sua dor. Tarso Genro, governador do Rio Grande do Sul, que se manteve ativo desde o dia da tragédia, foi pessoalmente abraçar e conversar com os pais e familiares das vítimas no enterro coletivo que ocorreu no Centro Esportivo da cidade. E fez a promessa: “Vamos encontrar todos os responsáveis. Eu garanto”. 

Em Brasília, a situação dos bares e boates não é muito diferente da boate gaúcha Kiss. Apenas 20% delas funcionam com a licença em dia. O governador Agnelo exigiu, então, uma fiscalização intensa em todas as casas de entretenimento do DF, que passa a ser realizada pela Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis), pelo Corpo de Bombeiros e pela Secretaria de Segurança Pública. 

Por uma triste casualidade, em concomitância com a tragédia, Brasília recebeu Jerome Valcke, secretário-geral da Fifa, em evento para comemorar, mesmo que de forma discreta e enlutada, os 500 dias que faltam para a Copa do Mundo. Em meio à promessa de entrega do Estádio Nacional de Brasília no dia do aniversário da cidade, no próximo ano, ficou a dúvida se ele, assim como as outras obras, terão a segurança necessária para evitar tragédias como a de Santa Maria, no centro gaúcho. 

Na terça-feira, quando a emoção e as despedidas deram lugar ao desejo dos parentes e autoridades públicas por justiça, teve início um verdadeiro duelo de fuga das responsabilidades criminais e civis. Primeiro, Cezar Augusto Schirmer, prefeito de Santa Maria, declarou que a culpa não era somente da banda ou dos donos da boate, mas também do Corpo de Bombeiros, por não terem feito uma fiscalização rigorosa no local. Porém, os laudos dos Bombeiros que permitiam o funcionamento dentro das regras de segurança, estavam de fato vencidos, mas o da prefeitura também. Por isso, o Ministério Público abriu inquérito para elucidar quem falhou na inspeção da boate Kiss. Aos proprietários, cabe também a culpa de terem feito uma reforma irregular, sem o aval nem da prefeitura, nem da Brigada Militar. A superlotação também foi responsabilidade da boate, que com capacidade para 691 pessoas, permitiu a entrada de pelo menos 1.000 no dia do incêndio. Marcelo Arinogy, responsável pela Delegacia Regional de Santa Maria, foi interrompido enquanto falava com a imprensa em entrevista coletiva, por uma multidão que exigia justiça. “Vamos investigar todo mundo. Bombeiros e prefeitura serão investigados sim. Vamos cortar na própria carne”.

Brasilia em Dia

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