Tentáculos do bicho
Operação recente da polícia mostra que o poder dos
banqueiros do jogo do bicho continua presente em diversas esferas da
sociedade brasileira. Tão popular quanto o carnaval e o futebol, o jogo
ainda rende milhões
redacao@folhauniversal.com.br
Proibido desde 1895 – mas muito longe de
ser banido do Brasil –, o jogo do bicho movimenta milhões de reais e
permanece infiltrado em diversas atividades regulares da sociedade. Do
futebol ao carnaval, a cúpula da contravenção do jogo de azar mais
popular do País transita por diversos poderes. Agora, a megaoperação
deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro reacendeu a discussão
sobre esse jogo, que já criou figuras poderosas como o carioca Castor de
Andrade, apontado como o mais famoso banqueiro do bicho de todos os
tempos.
Uma operação feita no final de dezembro
revelou uma quadrilha do jogo do bicho supostamente chefiada por Hélio
de Oliveira, conhecido como “Helinho”, presidente da escola de samba
Acadêmicos do Grande Rio. Também foram apontados como líderes da
contravenção outros dois presidentes de escolas de samba: Anísio Abraão
David, patrono da Beija-Blor de Nilópolis, e Luizinho Drummond, que
administra a Imperatriz Leopoldinense. Nenhum dos três foi preso
durante a operação e são considerados foragidos da Justiça. A operação
levou para a prisão 44 pessoas, em seis cidades do Rio de Janeiro, entre
elas Mário de Oliveira Tricano, ex-prefeito de Teresópolis, que de
acordo com as investigações controlava o jogo do bicho no município e
adjacências, na região serrana do Estado. Por ser considerado uma
contravenção de aliados, o jogo do bicho é diretamente ligado a
diferentes tipos de crimes, como a máfia dos caça-níqueis, bingos e
outras atividades ilegais. Além disso, alguns chefes do jogo também já
foram ou são ligados a clubes de futebol ou esferas do poder público.
“Atrás de toda escola de samba e time de futebol tem um grande bicheiro.
Alguns deles aparecem entre a diretoria nos finais dos desfiles”, diz
Simone Simões Soares, professora da Universidade Federal do Ceará e
autora do livro “O Jogo do Bicho - A Saga de um Fato Social Brasileiro”.
Castor de Andrade, por exemplo, foi presidente de honra do Bangu
Atlético Clube durante anos. Coincidência ou não, o mascote do time é um
castor.
“A relação entre o jogo do bicho e o
samba começa com a figura de Natal da Portela, um bicheiro que
controlava a área de Madureira, nos anos 1950. Ele tinha uma relação
especial com a escola e com vários de seus fundadores. Todavia, ele
nunca chegou a acumular tantos bens quanto os ‘banqueiros’ aparentam
possuir atualmente. Nos anos 1970, a relação entre os bicheiros e as
agremiações se tornaram intensas. Essa relação buscava fortalecer a
empresa do jogo do bicho, pois a aproximação maior entre o ‘banqueiro’ e
os moradores da área onde a escola estava instalada, proporcionava
acesso à mão de obra e a possíveis novos apostadores. Por outro lado,
oferecia visibilidade social aos ‘banqueiros’, elemento importantíssimo
para o rápido crescimento no número de escolas de samba patrocinadas por
empresários do jogo do bicho”, explica o professor de História do
Brasil República da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Felipe Santos Magalhães, autor do livro “Ganhou, Leva! O Jogo do Bicho
no Rio de Janeiro (1890-1960)”, publicado pela Editora da FGV. “O
futebol começou da mesma maneira passional. O Castor de Andrade
patrocinava o Bangu porque gostava do time”, afirma Magalhães.
Segundo o cientista social Michel Misse,
até que o tráfico de drogas se transformasse no principal foco de
interesse da segurança pública no Rio, o jogo do bicho foi o mercado
ilícito mais importante, tradicional e poderoso. “Sua rede social, sua
capacidade de dominação e sua expressão política local transformaram o
jogo do bicho – isto é, os banqueiros do bicho e seu entorno de agentes,
políticos e clientes –, durante muito tempo, numa organização
semelhante à máfia norte-americana do jogo, em menor proporção”, diz no
artigo “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime
no Rio de Janeiro”.
Em junho de 2007, a operação “Hurricane
2”, da Polícia Federal, já havia prendido o presidente de honra da
Beija-Flor, além de Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, na
época presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro (Liesa), e Antônio Petrus Kalil, o Turcão (ex-patrono da escola
Estácio de Sá). Segundo Misse, a cúpula do bicho carioca, formada pelos
principais “banqueiros” dos anos 1980 e liderada pelo lendário Castor de
Andrade, organizou-se legalmente com a criação da Liesa, em 1984, que
passou a dirigir o grande desfile das escolas. “Com a fundação da Liesa,
o carnaval passou a ser mais um empreendimento capitaneado pelos
banqueiros. Se no passado as escolas recebiam dinheiro dos “patronos”,
hoje a mão se inverteu. Ser presidente de uma escola virou uma grande
fonte de renda. O carnaval rende milhões – tem dinheiro da tevê,
patrocinadores, da venda de ingressos, da prefeitura, do governo,
dinheiro da quadra, venda de fantasia, gente que paga para subir em
carro alegórico. As escolas não precisam mais dos recursos do jogo do
bicho”, diz o professor Magalhães.
A antropóloga Simone Soares diz que a
popularidade do bicho sempre esteve ligada ao fácil acesso e a bons
prêmios. “Na época em que o Castor organizou em oito as zonas de domínio
do bicho, 80% da população de baixa renda jogava. Como pode ser feito
desde R$ 0,50 e paga, no mesmo dia e sem dedução de impostos, 4 mil
vezes o valor da aposta, caso se acerte o milhar, ficou muito popular.”
Segundo a promotora Angélica Glioche, do Grupo de Apoio Especial ao
Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, responsável pela
operação feita agora, os contraventores aproveitam os investimentos nas
áreas sociais e culturais, como o carnaval, para se proteger das
denúncias dos crimes praticados pelo jogo do bicho. A tecnologia usada
chamou a atenção. “Agora temos o jogo do bicho on-line, que permite que o
banqueiro possa, da sua casa ou de qualquer local remoto, com um
notebook ou um tablet, ter acesso ao que é feito no momento da aposta”,
diz. A empresa acusada de fornecer a tecnologia aos bicheiros, a
Projeta, sediada em Salvador, já teve materiais apreendidos pela
polícia.
A operação apreendeu quase R$ 4 milhões e
joias na mansão do tio do presidente da Grande Rio. Os agentes acharam
dinheiro em forros, paredes falsas, atrás de geladeira, ralos e até na
rede de esgoto. Devido ao volume, foi usado um carrinho de supermercado
para retirar as notas da casa. Uma réplica de um fuzil AK-47 também foi
apreendida.
“Desde que o bicho foi proibido em 1895,
o dinheiro vindo desta atividade é ilegal. O carnaval e o futebol foram
meios de afirmação social dos banqueiros, mas também para se lavar
dinheiro. Prática comum é a de investir em empreendimentos e
distribuí-los entre ‘laranjas’. Isto é, comprando restaurantes, prédios,
estabelecimentos e outros negócios legais, que ficam em nome de pessoas
de confiança”, diz Magalhães.
Início nobre
O
jogo do bicho foi inventado em 1892, pelo barão João Batista Viana
Drummond, fundador do Zoológico do Rio de Janeiro. Com a intenção de
arrecadar dinheiro para manter o zoo, o barão mandou imprimir folhetos
com imagens de 25 animais, que eram distribuídas entre os visitantes que
participavam de um sorteio que acontecia diariamente. O vencedor
ganhava um valor em dinheiro correspondente a 20 vezes o valor do
ingresso.
Vida popular
Alguns anos depois de ser inventado, o
jogo se desvinculou do zoológico e se tornou parte do cotidiano da
cidade. Textos publicados em jornais de autores como Machado de Assis
descreviam a comoção em torno das apostas e a expectativa em relação ao
resultado do sorteio. Em 1941, já consolidado como uma das grandes
paixões do carioca, o cerco ao bicho se fechou com a proibição de todo
jogo de azar.
Figurão
Uma das figuras mais emblemáticas da
história do jogo do bicho é Castor de Andrade. Apontado como dono da
maioria das bancas do Rio, ele era considerado um moderado, que não
gostava da mistura do jogo e outras práticas ilegais. Ele também foi
patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel e
presidente de honra do time de futebol Bangu, onde ainda é reverenciado.
Castor foi preso algumas vezes e cumpria prisão domiciliar quando
morreu de infarto fulminante, em 1997. Desde então, uma guerra entre
herdeiros já matou mais de uma dezena de pessoas.
Folha Universal
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